França acaba com anonimato de doadores de esperma e óvulos

por Carla Quirino - RTP
Ilustração de fertilização Nemes Laszlo /Science Photo Libra / NLA via AFP

A partir do início deste mês, os doadores de esperma e óvulos em França deixam de estar abrangidos pelo carácter de anonimato. A nova legislação francesa de bioética significa que as crianças concebidas por reprodução assistida, quando atingirem a idade adulta, poderão solicitar detalhes de identificação como o nome ou aparência do doador.

A reforma francesa da lei da bioética arracou em 2021, sob forma do artigo 5.º da Lei n.º 2021-1017, de 2 de agosto desse ano, mas o processo legal em pleno entrou em vigor no início desta semana.

A nova regra da legislação vai permitir ao individuo - concebido a partir de recurso a fertilização in vitroaceder a informações sobre o progenitor biológico assim que atinja 18 anos de idade.

A ministra francesa da Saúde, Catherine Vautrin, classificou a norma legislativa como "um novo direito fundamental" para todos aqueles que são concebidos com recurso a tecnologias de reprodução assistida.

"Esta reforma é um passo crucial para respeitar os direitos dos indivíduos e garantir uma melhor gestão dos pedidos de procriação medicamente assistida. Faz parte de uma abordagem global que visa modernizar e humanizar as práticas médicas, colocando as necessidades e os direitos dos pacientes no centro das preocupações", declarou Vautrin.
Destruição de doações antigas
Após a reforma ter sido iniciada em 2021, as autoridades francesas de saúde começaram a eliminar aos poucos as doações de esperma e óvulos mais antigas, que estavam abrangidas pelo regime de anonimato.

No final de 2022, apenas cerca de 30 mil doações - das mais de 100 mil – puderam ser conservadas. As restantes 70 mil foram retiradas e destruídas por já não poderem ser usadas.

"Do armazenamento de mais de 100 mil amostras de antigos doadores anónimos registados" no final de 2022, "restam menos de 30 mil, a maioria das quais inutilizáveis. Ora seja porque se atingiu o limite de 10 nascimentos por doador, ora seja porque "não atendem aos critérios de qualidade atuais", indicou a Agência de Biomedicina.

Porém, haverá alguns casos de exceção. Se o doador original concordar em ser identificado, essas amostras podem ser usadas para investigação médica ou preservadas para inseminação artificial.
Transparência e identidade pessoal do progenitor biológico
A nova regra abrange já crianças concebidas a partir de 2022 e impactará milhares de pessoas. Ao completarem 18 anos poderão requerer diversas informações sobre o progenitor biológico.

Assim, o nome do doador, idade, aparência, estado de saúde, profissão, situação familiar, ou até mesmo alguma carta pessoal, caso o doador a tenha escrito, serão dados que deixarão de ser anónimos.

Sob a nova regra de transparência da identidade dos doadores, a França constituiu um banco de amostras reunindo já um armazenamento de 100 mil amostras de pessoas que consentiram em não permanecer anónimos.

Entretanto, houve receio que ao ser eliminada essa ocultação de identidade iria afastar os doadores. Porém, as autoridades de saúde reportam que o número de doadores aumentou.

“Os números em 2024 revelam que mais de mil indivíduos se voluntariaram para doar esperma — acima das 676 do ano anterior”, indica a agência francesa de Biomedecina.

"A atividade de procriação medicamente assistida com doação de esperma aumentou 8,5 vezes em comparação ao período anterior à lei de bioética de 2021", acrescentou.

De acordo com as autoridades francesas de saúde, a nova legislação passa a abranger mais pessoas que procurem tratamento de fertilidade, como mulheres solteiras e casais do mesmo sexo. Desta forma, estes utentes fizeram disparar os pedidos de fertilização.

No fim de 2024, estavam registadas mais de 10.600 mulheres em lista de espera para a fertilização in vitro com doação de esperma. Em pontos percentuais, os pedidos distribuem-se essencialmente por três grupos: 45 por cento são mulheres solteiras, 38 por cento são casais lésbicos e 17 por cento são casais heterossexuais, diz a Agência de Biomedicina.

Elodie Bougeard, presidente do PMAnonyme, grupo que representa adultos concebidos por doadores, defende que esta reforma é um marco importante no campo dos direitos. “É uma vitória pela qual lutámos. Saber quem é o doador biológico, conhecer os antecedentes médicos, não é um luxo, é um direito”, realça a ativista.

"Podemos não nos reconhecer em certos membros da família com quem crescemos e temos o direito de saber o que vem desse doador ”, acrescenta.

Segundo Le Figaro, entre 2022 e o início de 2025, 701 adultos contataram a Comissão de Acesso a Dados de Doadores Terceiros para Pessoas Nascidas por Procriação Medicamente Assistida (CAPADD) para solicitar informações sobre a identidade dos “progenitores” biológicos. Até agora, apenas 73 receberam com sucesso dados de identificação ou parciais.
Portugal, dois sistemas

De acordo com o Portal do Serviço Nacional de Saúde (SNS), em Portugal a doação de esperma decorre sob total anonimato, existindo a garantia de que todas as informações facultadas serão geridas segundo estritos critérios de confidencialidade nos termos da legislação em vigor.

O Banco Público de Gâmetas é o serviço disponibilizado pelo SNS que também é responsável pelo recrutamento e seleção de dadores de óvulos e espermatozóides. Os óvulos e espermatozóides resultantes das recolhas são utilizados em técnicas de Procriação Medicamente Assistida.

Em 2018, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o anonimato de dadores de óvulos e esperma. A partir desse ano, o Serviço Nacional de Saúde passou a ter menos doadores masculinos. As clínicas privadas mantiveram o mesmo número de voluntários. Para a Associação Portuguesa de Fertilização era preciso acabar com as incertezas, sublinhando a "necessidade de se legislar para clarificar o imbróglio legal".

A Lei n.º 48/2019 de 8 de julho de 2019 alterou a regulação da procriação medicamente assistida em Portugal, incluindo a confidencialidade dos dadores e criando um regime transitório para salvaguardar as doações feitas antes do acórdão do Tribunal Constitucional de 24 de abril de 2018.

Assim, o anonimato das doações de óvulos e espermatozoides efetuadas até 7 de maio de 2018 está garantido. Após essa data, as doações de gâmetas - óvulos e espermatozoides - passaram a ser não anónimas em Portugal. O que implica que as crianças nascidas por procriação medicamentem assistida e com recurso a dádivas, quando atingirem a maioridade de 18 anos, podem conhecer a identidade civil do progenitor biológico, tal como a França começou agora a permitir.

Em março deste ano, a Assembleia da República aprovou por unanimidade o prolongamento do anonimato das recolhas anteriores a 7 de maio de 2018, deslocando o prazo dos gâmetas para 2027.

Em suma, o anonimato das doações acabou, mas as recolhas anteriores a 7 de maio de 2018 mantêm a confidencialidade.

Tópicos
PUB